quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Cego para o desejo

Quando eu tinha uns 15 anos, houve uma exposição de obras de Rodin no Museu de Belas Artes, no Rio, e eu fui ver.

As peças eram impressionantes de tão realistas. Se fossem pintadas para parecerem gente, eu teria acreditado que eram pessoas normais, posando em meio aos corredores do museu.

Em determinado momento, percebi que entrou um novo grupo de pessoas na sala onde estava. Todos se apoiando uns nos outros e uma pessoa guiando a todos.

Era um grupo de cegos, estudantes do Instituto Benjamin Constant, uma escola para deficientes físicos no Rio.

Quando encontraram a primeira escultura da sala, agarraram-na com muita ânsia e sofreguidão.

Nos meus 15 anos de idade, fiquei um pouco assustado com aquilo, aquela cena que mais parecia um ataque de um grupo raivoso a uma pessoa indefesa até sufocá-la.

As mãos passeando por todo o corpo da estátua somado aos rostos sorrindo e se regozijando do que faziam, hoje, me trazem uma outra impressão. Lembrando hoje daquela cena, percebi que parecia mais uma satisfação sexual no ato. Todos gozavam ao “ver” a estátua, ao deslizar a ponta dos dedos por cada saliência e reentrância de um homem sentado. Uma orgia de prazeres compartilhados e, ao mesmo tempo, particulares.

Sei que pode parecer meio feio, mas sinto um pouco de inveja – e curiosidade – do sexo que um cego desfruta. Por mais que que possa fechar meus olhos e seguir o mesmo processo, acho que a “visão” do todo é diferente, intensificada, num deficiente físico.

Talvez, minha limitação em relação a eles seja exatamente a capacidade de enxergar, que me impede de desenvolver e potencializar os outros sentidos. Acho que nunca conseguirei apreciar uma escultura como aquelas pessoas – com desejo e luxúria pela peça.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Vida na fazenda

Acordei mais um dia com o som do maldito búfalo caindo do telhado ao tentar seu matinal cocoricó. Tenho que colocar um poleiro lá em cima.

- Onde estão os corvos pra me trazer comida? Aqui no curral não dá pra esperar muito ou ficamos logo ansiosos.
- Calma, mãe. Eles já vem. Eles sempre se atrasam.
- Mas temos que trabalhar! Seu pai já vai sair pro escritório.
- Lá vêm eles gorgolejando.

Todo o dia é mesma coisa. Minha mãe reclamando e os corvos atrasando. Essa vida na fazenda tá ficando chata demais. Não quero ser só um fazendeiro pro resto da vida.

Merda! Maldita carpa! Fez um buraco debaixo da minha tigela e roubou todo o meu café-da-manhã. Um dia ainda vou ter que providenciar um pesticida pra acabar com todas as carpas fazendo buracos no chão da nossa fazenda.

Bom, hora de trabalhar. Tenho que mastigar todo o capim pra poder os gatos virem e plantarem cachorros. Até que a vida no campo tem suas vantagens, no outono. Porque no verão, com todos esses cachorros maduros pra colher, fica uma barulheira só com todos os latidos.

Esses porcos tão comendo a plantação toda de camarão! Cadê o espantalho. Sem o espantalho, os porcos chegam voando e comem tudo, sem medo de serem felizes. E não adianta botar o cavalo de guarda porque ele late pros porcos, eles voam e voltam pra comer.

O bom seria se um dos corvos viessem com uma cachimbo e atirasse nos porcos. Aí eles iam fugir de vez.

- E aí, Pedro? Vamos pra escola?
- Nem, cara. Cansei de fazer mel. Prefiro entrar na geladeira e catar uns cangurus da cabeça que tão me matando de tanto coçar. De repente faço um canguru assado no almoço.
- Ah tah. Você quem sabe...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Papo de macho

- Fala!
- Coé.
- Tranqüilo?
- Nem... Tô meio pra baixo.
- Qual foi?
- Sei lá. To meio deprimido. Meio triste com as coisas, sabe?
- Coé! Isso tá parecendo coisa de viado. Só falta dizer tá chorando sem motivo, também.
- Pois é. Tô mal assim.
- Virou viado, por acaso?
- Não! Não tem nada a ver! Só tenho andado meio perdido, meio sem saber oq eu fazer da minha vida. Tava precisando me encontrar.
- Caralho! “Tô precisando me encontrar” é total coisa de viado! Daqui a pouco você vai chegar e me dizer que nem acha mulher tão interessante assim e que você se sente muito melhor entre seus amigos do que pegando mulher por aí.
- Mas eu me sinto melhor com meus amigos do que pegando mulher por aí!
- Tô falando!
- Mas não tem nada a ver. Eu gosto de mulher. É mais uma questão comigo mesmo... Tenho me sentido estranho, um forasteiro no meu próprio corpo.
- “Estranho no próprio corpo”? Isso é coisa de travesti! Vai cortar fora seu bagulho e botar uns peitos de silicone, agora?
- Não! Caralho tu é foda, hein! Tô aqui na merda precisando me abrir com alguém e tu fica me sacaneando!
- Cara, tudo bem. Não tenho nada contra viado, só não quero que você se abra pra mim na sua primeira relação homossexual...
- Putaquepariu!
- Não! Tô brincando! Vai, pode falar.
- Cara, tá foda... To pensando em ir pra uma terapia.
- Terapia?
- É! Sabe como é: chegar lá, fazer um esforço e botar pra fora tudo o que tem de ruim dentro de mim mesmo, expelir tudo o que tá me fazendo mal.
- Cara, o que tu vai fazer na terapia? “Fazer um esforço e tirar de dentro tudo o que me faz mal”; parece que você vai dar um cagadão depois de comer um sarapatel estragado!
- Porra, mermão, tu tá foda hoje! Deixa pra lá essa merda!
- Não, pode falar. Tava brincando!
- Não deixa pra lá. Vamos continuar bebendo e falando de outra coisa.
- Tem certeza?
- Tenho. Foda-se.
- Beleza, então.
- Então diz aí: como vai aquele seu timinho de merda? Vai cair pra segundona com certeza!
- Coé, cara... Fala assim, não. Fico todo mal com essas paradas. Nem brinca com essas coisas. Pô! Tem coisa que é sagrada e não se zoa. Tu é foda! Vou embora daqui.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Lógica de carrossel

Mais aqui.

Pra começar

Já devia estar nessa há mais de quatro horas. Sabia disso porque já tinha completado o percurso – ida e volta – da linha D e agora já estava na volta da linha A.

Não consegue lembrar muito bem como começou, o que o fez entrar no metrô e não sair mais. Foi algo quase como gravitacional: alguma força o impulsionou para lá e o tem mantido ali desde então. A única concessão parece ter sido a mudança de linhas.

Faz diferença como chegou ali? Achava que não. Só o que importava era o motivo.
E era exatamente isso que não encontrava. Sabia que devia ficar no metrô, mas não sabia o porquê e nem por quanto tempo.

O tempo não importava tanto também. Era só uma divisão arbitrária da minha vida feita por alguém para controlar o que fazia ao longo de um dia. não tinha relógio exatamente por isso, a sensação de controle externo exercido pelo objeto.

Mas, incoscientemente, buscava a hora em seu celular com alguma freqüência. Um hábito que não conseguia evitar, mesmo que quisesse.

Na verdade, todo o seu medo de controle foi por água abaixo quando ganhou seu primeiro telefone celular. Não há como fugir deste aparelho. Ele está sempre junto, sempre te dizendo a hora, sempre te despertando, sempre deixando uma porta aberta para alguém entrar na sua vida a qualquer momento, sem cerimônia.

E parecia que não conseguia se livrar dele. “Perdeu” seu primeiro, que foi rapidamente substituído por outro. Não conseguia deixá-lo em casa ou desligado – a pressão social para tê-lo consigo era maior do que podia enfrentar. Adorava andar de metrô porque não havia sinal – era a liberdade contra as telecomunicações.

Só gostou mesmo deste carrapicho eletrônico quando comprou um que vinha com tocador de músicas. Aí passou a ter algum sentido aquele peso no bolso.

Um selecionado de músicas de Cake, Jet, Fastball e Strokes lhe fazia companhia em sua viagem sem destino. Nada mal para companhia, mas ainda assim não dava sentido à sua turnê.

Havia também seu caderninho de anotações. Ele escrevia freneticamente, sem nem pensar no quê. Sem coerências ortográficas, com incongruências gramaticais, cheio de silepses de tudo quanto era tipo, sem nexo textual ou sentido contextual. Eram só palavras juntadas em linhas que formavam parágrafos em páginas de um livro em branco sendo escrito a caminho de lugar algum.

Às vezes desenhava. Alguém interessante com quem dividiu o vagão por algum tempo ou alguma imagem abstrata que lhe havia ocorrido. A verdade é que só ele compreendia seus traçados, mas era importante colocar o desenho pra fora, tirar de dentro de si.

E assim percebeu o que fazia ali. Estava cheio. Estava completamente preenchido de informações, idéias, conceitos, besteiras, piadas, contos, notícias; abarrotado de conversas que nunca ocorreram mas sempre estiveram ali, esperando sua oportunidade de se fazerem em diálogos.

Precisava esvaziar um pouco a mente e o corpo. Precisava diminuir a pressão interna, colocar para fora de alguma forma tudo o que lhe sufocava por dentro. Assim tinha passado as últimas quatro horas e meia e era assim que provavelmente ia passar mais algumas horas: vomitando pensamentos numa folha em branco, num passeio sem chegada e nem saídas, sem meios de comunicação ou de interrupção, por baixo da cidade, isolado em meio a todos os outros passageiros, em meio a toda uma metrópole que percorria suas idéias entrando e saindo conforme lhe comprazia.

Precisava vomitar.